Aqui estou eu. Ser humano como qualquer outro, distinguido pelas características em comum e as famigeradas peculiaridades, também chamadas diferenças. Amarrado entre duas forças atávicas, praticamente um cidadão grego de outrora, à deriva em mundo de forças primevas e primordiais. Sentado sobre o instante que se esvai a cada momento em que nasce, sobre o momento que fenece antes que eu o perceba, na gangorra entre a primeira fagulha de débil autoconsciência que obtive e a inescapável derradeira. Deslocado de mim entre a não vida antes da vida e a não vida após a morte. Transtornado pela tirania da identidade, tantas vezes motivada por percepções grotescas e preparadas por pensamentos de pessoas que me precederam e não pensaram sobre os pensamentos das pessoas que as precederam. Um ser humano contemporâneo, e só.
Deste ponto, que é intrínseco em sua verdade, não há nada de especial
Vivo um tempo de paradoxos. Mas, quando os deuses eram rotineiros no ocidente, apaixonados, miseráveis e apaixonantes, não era o paradoxo motivo de impulso ao invés de perplexidade e depressão?
Ano passado, a falácia de ensinar ganhou contornos menos hipócritas para mim: desisti. E hoje percebo que é ambição demais querer fazer isso, e esperar que as pessoas, em sua maioria, o queiram também. Aos poucos desisti do amor, ou da faceta alardeada do amor. Não importa quantos ótimos livros tenha lido sobre as mentiras que contamos a nós mesmos sobre este tema, foi mesmo em um relacionamento desconstrutor que consegui chegar a este estado que talvez seja o mais lúcido de minha vida até agora. E por isso foi um relacionamento rico. Existe a vontade de escrever como um desabafo, mas não é esta a questão aqui. Faz meses que não escrevo na Miríade, há vários esboços de ensaios e crônicas espalhadas em cadernos de rascunhos, mas o deixar para depois eterno abortou, por enquanto, a maioria deles.
Hoje escrevo para deixar registrados certos pensamentos sobre coisas que se tornaram alvo de reflexões graças a minhas novas ambições. A maior dessas novas ambições é ser uma pessoa boa. Poderia alegar que tenho consciência de que não fui uma pessoa ruim tantas vezes assim, que perto de outros até que sou muito benévolo para com as pessoas, e tantas outras superficialidades. Mas a verdade é que querer tornar-se uma pessoa boa implica em certas considerações inescapáveis, ao menos para mim.
A primeira é que ser bom perpassa duas concepções que são alvo das questões humanas desde o início: o caráter ontológico do ser, coisa que parece pleonástica, mas é extremamente imanente à existência. Se eu existo, o que sou? E tão logo a resposta se mostre, devo indagar por que me defino como humano, como um ser humano consciente de que sou humano. Para poupá-los de uma série de referências filosóficas, basta dizer que, com tantas respostas catalogadas ao longo de milênios, não deixa de ser gritante o fato de que, ao final, em meu universo interior, meus pensamentos, a resposta ficará à mercê de minhas limitações cognitivas e de, quem sabe, minhas escolhas.
Deste modo, se os conceitos que fazem com que me considere um ser humano limitam minhas escolhas, uma vez que a leitura que faço da realidade é uma escolha, embora em certo nível consciente, a minha concepção não é real ao ponto de poder estendê-la a todos os outros entes que, em caráter metafísico, não se encaixam no padrão moral e ético daquilo que além das células e das heranças genéticas possa vir a considerar um humano, tal como eu.
Ser humano então, é algo, para muitos e também para mim, que vai além das contingências da matéria e abraça os limites perigosos da anima. Perigosos porque é bonito sustentar a crença em tais coisas, mas idiota aos olhos da razão fundamentalista. De qualquer forma, Brás Cubas estava certo, e não só a miséria, mas os sonhos (que podem também, levar à miséria) são os legados de nossas existências. Os gregos, novamente, estavam certos. Os fatos, verídicos ou não, nos agraciam ou amaldiçoam com uma eternidade que ás vezes invejo, e outras nem tanto.
Por tudo isso, a ambição de ser alguém bom é desmedida, medonha. Só sei que nada sei a respeito de quem realmente sou, até mesmo por que, com exceção de uma certa essência reminiscente de memórias de olhares quando infante, não sou quem um dia quis ser ou quem fui durante tempos, ou tampouco era realmente aquelas pessoas homônimas de mim. Logo, temos o segundo problema que é mais pernicioso: ser bom, quando a bondade está amarrada a valores culturais erguidos por dogmas que não têm explicação razoável, a não ser a esperança, a cada momento, que nossas angústias sejam resolvidas por um Deus, sempre ex machina.
O nó górgio de minhas angústias está aí. Simplificar a jornada da vida em ser bom, como muitos lucrativos manuais de segredos que prometem responder sobre quem somos nós aconselham, é uma tarefa mais hercúlea do que se pensa. Mas novamente os gregos, enquanto astrólogos, podem guardar uma semente de resposta. Assisti faz um tempo um programa no Canal Futura chamado “Beleza Pura”, uma série de documentários sobre o olhar e a beleza. Num deles, um astrólogo citou a etimologia de “considerar”, que é agir conforme o movimento sideral, do universo, da literatura composta pelas estrelas que escrevem o céu. Porém, afirmar que existe uma atitude ontológica cuja bondade obedeça uma lei natural, e portanto comprovada na ordem da matéria e seu movimento de caos e ordem, sendo assim analogamente divina (uma vez que o Deus, ou o princípio divino inventado ou intuído é a totalidade do universo, o Omni), implica em pensar (ou considerar com a mente...) o que deveria ser considerada uma força “benigna” e o que seria “maligno”.
A primeira idéia que me ocorre é o quão errados estamos hoje acerca do emprego das palavras “sagrado” e “profano”, quando estabelecemos, graças à liturgias repetidas por séculos, que aquilo que é considerado belo deve ficar intocado e imutável, e o profano é o mal, importunador da ordem do paraíso de luz eterna. Lembremos que a luz cega àquele que, num primeiro momento, não está habituado, ou talvez condicionado, à sua presença. E antes que alguém rotule minhas palavras de diabólicas, procure o significado do nome Lúcifer.
Ao seguir o raciocínio que proponho, se colocarmos aquilo que é “naturalmente bom” como as coisas e atitudes que são e agem conforme o universo ( que segundo a maioria é criação, e que individualmente, de fato, o é ), o assim chamado mal, poderia ser tudo aquilo que vai contra a ordem natural das coisas. Nosso grande problema, portanto é conhecer a ordem do mundo, aquela que faz sentido na bússola da alma. Para tanto, devemos também aceitar o caos do mundo, sem o qual a ordem não faz sentido. O que não significa aceitar o mal, pois caos e ordem são facetas do mesmo jogo, e contribuem para a dinâmica da existência com certa obviedade, apesar de mal entendermos como existimos ontologicamente.
Acontece que a questão do mal também vem acompanhada pela necessidade aparente do ser humano em estabelecer valores, a fim de preencher a misteriosa existência com sentido. Quando algo vai contra uma ordem estabelecida, é preciso, segundo uma lógica secular, sofrer. Ou melhor, é preciso alguém sofrer. Portanto, todo erro tem origem no mal, pois está em descompasso com uma ordem vigente, e aquele que provoca o mal, age em nome dele, e assume sua identidade. É aquele que tem culpa.
Assim, ter culpa é inescapável, pois uma vez cometida a ação que engendrou o mal, não há retorno, e o mal não pode ser desfeito na memória de quem o soube, a começar daquele que o fez, se enxerga sob o menor aspecto que seja, a sua atitude como má. Desculpar, portanto, seria desfazer algo acontecido, e não temos tal poder. Não há remédio para culpa senão viver com ela. Mas a culpa em termos humanos, se o humano é limitado, é também, uma noção com grande probabilidade de inexistência, uma vez que o ser humano desconhece a própria existência como um todo e a consciência que pune o próximo ou a si mesma é limitada.
Acho que agora chegamos ao ponto crucial desta manhã em que escrevo. O ponto exato é: como devo agir? Como ser o que sou? Existe uma noção de certo que combine o que sou com o certo universal? Não sei responder a essas coisas, mas algumas hipóteses vieram a mente e hoje amadureceram um pouco. Ainda em transe por algumas rupturas emocionais em minha vida, voltei para a cama após o café e olhei para a prateleira ao lado. Todo mundo que me conhece bastante sabe o quanto gosto da obra do Alan Moore, e por isso releio muitas de suas coisas. Watchmen me incomoda ( de uma boa maneira ) por que, entre as várias passagens da obra, há duas aparentemente antagônicas que levam-me a pensar, de tempos em tempos, em como devo olhar para o ser humano.
É possível ter esperança? Se não, qual o sentido de tentar fazer o bem em meio às trevas? Nossa vida tem realmente algum valor?
Reli a passagem com o ponto de vista niilista de Rorschach e a com o ponto de vista reconfortante do Dr. Manhattan. É belo como a crueza das perspectivas do vigilante humano o faz, apesar de desiludido, ainda tentar colocar ordem, solitariamente, no caos que o engole. E ver o ser de percepções divinas que é Manhattan adquirindo uma perspectiva que, apesar da frieza crescente de sua lógica, abraça o caos como motivação para valorizar a vida humana. É extremamente belo, a cada vez que leio.
Muitas vezes me aproximei da visão de Rorschach, e não creio que ele esteja errado. Ao menos, nem ele e nem o seu paralelo narrativo acreditam na existência de Deus, ao menos, como nós o concebemos, sempre prestes a surgir e, num estalar de dedos, como em algumas tragédias gregas, resolver a nossa situação. Está tudo em nossas mãos, desde que acreditemos que isso vale alguma coisa. Hoje, a visão de Manhattan deu uma direção às minhas reflexões.
Ao lembrar dos milagres termodinâmicos (termo da física quântica que alude a probabilidades que matematicamente são quase impossíveis, como o chumbo transfomar-se, súbito, em ouro), o personagem resgata a fé, se assim podemos chamar a admiração pelo imprevisível que surge para nós com a qualidade do novo e do belo, na vida humana. As coisas e os fenômenos do universo estão aí, das macro às micro estruturas e substâncias, no entanto, é o fenômeno da vida que é interessante e desafia toda a lógica universal até onde podemos entender astronomicamente. A vida única de cada um, com essa identidade moldada, aleijada, erma, de cada um de nós. Essa possibilidade de sermos escravos do olhar dos outros, essa capacidade de iluminar o olhar alheio por nosso próprio olhar, ausência, palavra e silêncio. Somos especiais, enfim. Importantes quiçá. Interessantes, no mínimo. Mas, nas palavras do personagem, somos tantos que não nos damos mais conta disso.
Foi então que percebi uma última questão, que deixo aqui para quem quiser ir além. Ou para eu mesmo mais tarde. Entendi a compaixão; a compaixão é o atributo da pessoa capaz de pensar a si e aos outros além da própria rotina e retina; é atributo do Deus feito homem que ao viver entre os milagres e ser um deles, entende a escuridão após os limites de seus sentidos e idéias e pede ao universo: “perdoa-os, pois não sabem o que fazem”. Desculpar é impossível para Deus, para o Dr. Manhattan e para nós, pois é impossível desfazer os atos, tudo após seria compensação. Deus é fiel: ao universo que é Ele mesmo. Mas com a consciência expandida, galgando aquilo que chamamos divino por estar além do medíocre, é que podemos verdadeiramente perdoar ( que significa doar com intensidade ). O olhar diferenciado esquece a pequenez e a irreversibilidade da culpa e lembra que toda lacuna tende a ser preenchida, portanto doa uma energia que poderíamos chamar de amor transcendental, quando algo age contra o universo, quando o universo homem se desconhece e desconhece o universo no próximo, quando age com o mal. É divino perdoar, pagar mal com o bem. E está ao nosso alcance, senão à nossa altura, perdoar.
E nas areias de Marte, numa Marte fictícia, planeta batizado com o nome divino da guerra, captei uma possível pista para a paz de espírito. Fecho os olhos, eu ser humano, “real”, me transporto para aquela Marte. É possível ver Vênus, fulgurante, planeta batizado com o nome da Deusa do amor, a nossa estrela d’alva, a estrela da manhã, um outro nome para o arcanjo caído.
O clichê é inevitável: há, sem dúvida, mais mistérios...